Chronique de Vasco Pulido
Valente
Observador – 24.12.2016
Hoje o mundo mudou. A
família alargada quase já não existe. Num T2, num T3 ou até num
T4, o espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Era
melhor antigamente? Não acho.
O Natal da classe média
por volta de 1950
Os Correia Guedes
O meu avô Correia Guedes
tinha sete filhos, 18 netos, um genro e seis noras. Na noite de 24
para 25 de Dezembro, a minha avó (já viúva) reunia esta gente toda
em casa dela na Av. da Liberdade: uma casa enorme, onde não faltava
espaço e a mesa de oito metros com tampo de mármore e pés dourados
lembrava ainda melhores tempos. Mas valia a pena. Era aquela a
ocasião de ver primos, tios, parentes, que nunca se viam, de saber
da vida de cada um, de armar uma intriga ou outra e, principalmente,
de sentir que fazíamos parte de uma grande família. A confusão era
enorme, a comida e os vinhos não acabavam mais. Os doces, quase
sempre trazidos por vagas relações de segundo ou terceiro grau,
também não. Naquela família de “direita” ninguém ia à missa,
nem se faziam discursos. Quanto muito, no fim de festa, o meu tio
Manuel, em nome do patriarca ausente, subia para uma cadeira e bebia
à saúde e prosperidade do rebanho. Não se davam presentes, talvez
por causa do número de crianças (uma boa desculpa) ou mais
provavelmente por causa das circunstâncias da família, que, fora
quatro ou cinco privilegiados, não eram boas. A minha avó, que
vivia como no fim do século XIX, com dama de companhia e três
criadas, gastava com energia as sobras de uma herança longínqua e
aos meus tios faltava o talento do pai para negócios. Apesar disso,
do ar de palpável decadência e de uma certa melancolia, o Natal
reconfortava as ruínas daquela família. Mal ou bem tinham
conseguido sobreviver sem desastres de maior e até, de longe em
longe, com um ocasional sucesso. Bem vestidos, bem comidos, com a
descendência à volta, o Natal, para eles, era um afirmação.
Os Pulidos
O Natal dos Pulidos
começava em Novembro com a compra de presentes: um trabalho difícil
que exigia muita astúcia e diplomacia. Era preciso ir ao encontro do
que as pessoas realmente queriam ou desejavam (o que exigia um ouvido
alerta e muita dissimulada troca de informação). E era preciso
“equilibrar” as coisas, ou seja, não dar a ninguém (tanto a
adultos, como a crianças) presentes que revelassem uma preferência
inoportuna ou fossem por si mesmos uma injustiça notória. Até ao
último minuto a espionagem (o que é que A tem para B?) e os
cálculos não paravam. Os Pulidos eram um clã, como não eram os
Correia Guedes, com um patriarca vivo, o meu avô Francisco Pulido
Valente, que – para tornar o quadro perfeito – fazia anos no dia
25 de Dezembro. A não ser pelas decorações, que evidentemente não
incluíam um presépio, o Natal não se distinguia bem dessa data
sagrada, numa família ateia e anticlerical.
Os festejos culminavam,
de resto, num almoço em casa do meu avô, com uma certa solenidade.
Toda a gente se vestia de cerimónia e toda a gente tinha um lugar à
mesa. A conversa, como sempre sucedia nessa doce família, depressa
degenerava em discussão, com cada um a querer mostrar inteligência
e saber ao patriarca, que intervinha pouco e gozava o espectáculo
com orgulho. As senhoras de maneira geral não abriam o bico, porque
o meu avô não deixara ainda o século XIX. Aos genros, sendo
médicos, era permitida uma ou outra palavra. Ao meu pai, engenheiro
químico, ninguém concedia qualquer espécie de autoridade.
Depois do almoço e do
champagne, o meu avô passava para a sala para receber as saudações
de fora: antigos “discípulos”, como se dizia na época, vinham
cumprimentar o “Mestre”; amigos famosos prestar a sua
indispensável homenagem; e alguns revolucionários do “5 de
Outubro” lamentar com o velho camarada a ditadura de Salazar. Às
sete da tarde, acabava a função.
O Natal da classe média
em 2016
Hoje o mundo mudou. A
família alargada quase já não existe. Ninguém se atreve a ter
sete ou oito filhos. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço não
chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Felizmente para elas,
as criadas desapareceram. Era melhor antigamente? Não acho.