Islam

2008
Maomé, o Islão e o Extremismo Islamita : as Sementes
prefacio de Manuel de Lucena
Edições Sfori
ISBN 9789728970154
243 p.

Estudo de história e de estratégia, que se debruça sobre um tema difícil, que aqui é tratado com serenidade e rigor, mas sem a tentação de iludir os temas e os problemas, que a cada passo se levantam. Muitas vezes existe ou receio na abordagem do assunto ou desconhecimento dos complexos pressupostos em que assenta.
Será que o extremismo islamita constitui um abuso terrível, absolutamente condenável à luz da boa doutrina islâmica e comparável aos graves desvios sofridos pela palavra de Jesus Cristo, que produziram violências cristãmente inadmissíveis como a das cruzadas e a da Inquisição, ou que afinal, o referido extremismo, tem mesmo raízes doutrinárias numa linha minoritária, descendente de Maomé. A esta questão, pretende responder FCG.


"O exercício fundamental a que o autor se dedicou, e do qual resulta o delineamento fundamental da obra, é o que designa como releitura do Alcorão cronológico. Assim, Francisco Corrêa Guedes descobre uma alteração significativa da atitude e do comportamento do Profeta ao longo das quatro fases em que as suras do Livro Sagrado são ditadas pelo Arcanjo Gabriel a Maomé. E assim há 47 suras correspondentes à Pregação de Meca (de 610 a 619), 21 suras ainda correspondentes ao período de Meca (de 619 a 621), 22 suras ditadas antes da Hégira (de 621 a 622-623) e, por fim, na quarta fase, 24 suras ditadas em Medida, antes da morte do Profeta. Ora, ao longo destes períodos, nota-se uma passagem progressiva das preocupações espirituais aos desafios de índole política e social da parte do Profeta.

Uma primeira parte do livro trata da génese do Islão, das formações sociais, económicas e políticas dos tempos anteriores ao Islão. Numa palavra, é-nos dado o quadro geral, o cenário geográfico e a dimensão humana que vão abrir caminho à religião muçulmana. O Deserto, a Palavra, o Comércio e as Religiões encontram-se e interinfluenciam-se dando-nos o contexto que vai permitir o desenvolvimento de um monoteísmo do deserto, erigido sobre os escombros de múltiplas religiões e idiossincrasias sociais. A segunda parte da obra mostra como “O Profeta” – Maomé – foi capaz de resolver e superar o puzzle correspondente à imbricação de centenas de tribos nómadas em conflito permanente, caracterizadas pela indisciplina e pela tensão constantes. Mas quem é o homem que consegue unificar os povos árabes? Um génio, sem dúvida, com a convicção firme de que era o profeta de Deus. Além disso conhece bem o judaísmo e o cristianismo, cujas carências procura superar. Maomé em Meca é a figura mansa mas firme que segue o caminho de Deus. Mas em Medina já é o exímio Chefe de Estado, com todas as consequências políticas dessa transformação. Em Meca sente-se nele a coragem na exaltação da fé, da rectidão, da piedade pelos pobres, da compaixão, da frugalidade, da temperança, da mansidão, da protecção dos oprimidos, da resignação, do sofrimento, da fidelidade e dedicação à família, de humildade e de pureza. Numa palavra, Maomé é então o exemplo da adoração a Deus. E esta vida de adoração ocorre até 619, data em que morre sua mulher, a piedosa Khadija, e do seu tio e pai adoptivo desde os oito anos, Abu Talib.

A partir desse ano (619) sente-se que Maomé se prepara para uma nova etapa de vida, e a palavra divina sofre uma metamorfose radical. A partir de então, a palavra divina sofre uma metamorfose radical: maior densidade, maior frequência e maior intransigência. Maomé conquista a liderança em Medina, não por ser profeta ou homem santo, mas por ser um estratega político militar de excepcional envergadura (com a força do leão e a astúcia da raposa). E que encontramos nesse indiscutível chefe religioso? A folha de serviços é extraordinária: vencedor de sessenta expedições e de vinte batalhas. Manuel de Lucena descreve-nos o Profeta do seguinte modo: “Fino diplomata, estratega dos maiores, político genial e, para cúmulo, amante inesgotável e grandíssimo poeta”.

Depois deste transcurso biográfico, temos a terceira parte do livro – constituída pela análise dos conceitos éticos, jurídicos, sociais e religiosos da fé, relacionando-os com a releitura do Alcorão cronológico. O Islão, o Alcorão, as razões de Estado e jihad são temas recorrentes, que se consolidam com o Livro Sagrado. Mas como entender este percurso histórico e analítico? Como ligar a fase compassiva e o momento de afirmação política? Manuel de Lucena procura encontrar explicações para os fenómenos contemporâneos, com os quais temos de saber lidar, muito para além das caricaturas e simplificações: “Procedendo de uma curiosidade sempre alerta que vacina contra penosas obsessões, tudo isto exclui um maniqueísmo estéril, incapaz de estabelecer com o Islão um modus vivendi aceitável e frutuoso. Mas nada disto permite ignorar as raízes inconvenientes do extremismo islamita (…) trazendo-nos dos seus primeiros doutrinadores medievais até aos que, no século XX, programaram a restauração da Umma (comunidade islâmica planetária totalitária) preparando o terreno de que brotou a produção terrorista dos últimos anos”.

Perante uma evolução histórica claramente situada e explicada, fácil é de compreender que no caso do Islão não há a separação de esferas que funda os Estados laicos ocidentais, que não esquecem a fórmula bem conhecida: “Dai a Deus o que é de Deus ec a César o que é de César”. Eis por que razão as conversas com o Islão moderado e com os muçulmanos pacíficos tem de ser muito mais exigentes do que até agora, para poderem ter frutos em termos de paz, de entendimento e de respeito mútuo. A verdade é que temos de compreender que Maomé deu aos árabes uma religião, e reuniu a multidão tribal indomável sob o comando de um só chefe e sob uma só lei. Ora, esta obra é de si excepcional.

No entanto, quando o Profeta morreu, deixou como herança moral e religiosa uma mensagem rica que liga a unicidade de Deus, a missão os profetas e o Juízo Final, a partir dos cinco pilares da conduta do muçulmano: testemunho e profissão de fé (Não há Deus senão Deus, e Maomé é o seu Profeta); oração ritual; esmola ao pobre; jejum pelo menos no mês do Ramadão; e visita a Meca uma vez na vida. No entanto, ao morrer a sua tarefa política encontrava-se incompleta. Faltava combater o orgulho persa e a cobardia dos romanos do Oriente, e essa missão inacabada ainda hoje marca a História. Muito para além da espiritualidade, há um testamento por cumprir do Profeta e esse é o tema mais incómodo que exige sabedoria, inteligência e espírito de paz na comunidade internacional contemporânea."

Guilherme d'Oliveira Martins