2010 (27.10) - Exercício de "Real Politik" (2)


A INTEGRAÇÃO EUROPEIA E O EURO




DA SERPENTE AO SME
Com vista a encontrar uma solução «europeia» para o problema criado pelo colapso do sistema monetário internacional, a CEE decidiu reunir uma Comissão chefiada por Pierre Werner, Primeiro-ministro do Luxemburgo. Do que se tratava, relembro, era de encontrar um caminho para assegurar a estabilidade cambial entre moedas CEE e, em especial, entre FF e DM. Logo se defrontaram duas teses opostas. A francesa, dita «monetarista» consistia em amarrar solidamente (?) o DM e o FF e esperar que isso determinasse a ‘acomodação’ das duas economias, uma à outra; a alemã, dita «economista», consistia em harmonizar previamente as duas economias e esperar que isso determinasse a estabilidade do câmbio. Um colunista americano bem humorado escreveu que, no caso alemão seria «the dog wagging its tail» (o cão a abanar a sua cauda) mas que no caso francês seria «the tail wagging its dog» (a cauda a abanar o seu cão).

A 8 de Outubro de 1970 foi publicado o Relatório Werner. A sua versão inicial, anterior ao colapso do SMI, tinha em conta o câmbio das moedas europeias contra dólar americano, isto é, em agonia procurava-se criar um regime de taxas «vagamente fixas» entre dólar e a serpente de bojo estreito constituída pelas moedas europeias. Após o colapso, a versão seguinte foi a da liberdade da serpente monetária relativamente ao dólar. Vejamos então o que significa a «serpente». A espessura da serpente é a distância percentual entre a moeda mais forte (a de menor inflação, o DM) e a moeda mais fraca, variável entre todas as outras. Essa distância percentual foi fixada em 2.25% totais, 1,125% para cada lado. Quando a moeda mais fraca atinge o limite, o banco central do país em questão deve «vender a moeda mais forte» - DM - para regressar para dentro da serpente.

Rapidamente o DM, campeão da baixa inflação se tornou o centro da serpente e todas as outras moedas, dele procuravam não se distanciar. O que rapidamente se tornou difícil senão inviável. Assim em Junho de 1972, a libra irlandesa e a libra inglesa saíram da serpente. Pior foi em Janeiro de 1974 em que foi o FF que teve que sair. Depois regressou em Julho de 1975. Mas em Março de 1976, o FF saiu definitivamente da serpente. Esta saída espevitou o engenho franco-alemão e os dois países entregaram ao duo Helmut Schmidt, Chanceler Alemão e a Giscard D’Estaing, Presidente francês, a pesquisa urgente duma saída para o impasse. O resultado foi consagrado em Julho de 1978 com os acordos de Bremen que criaram o Sistema Monetário Europeu SME.

O Sistema Monetário Europeu (SME) comporta duas componentes: o ECU, a moeda do sistema e o Mecanismo das Taxas de Câmbio, MTC.

O novo ECU é a moeda de conta central, «cocktail» ou «cabaz» de todas as moedas participantes vertidas cada uma, no cocktail com ponderação igual à que o PIB do país representava no PIB conjunto de todos os países membros. Isso feito, os países negociavam no ECOFIN, a paridade/ECU da sua moeda. Ficava entendido que as cotações correntes de cada uma se não desviariam nem para mais nem para menos do que 2.25% daquela paridade central (com excepções de 6% para alguns países). Daí o cognome de «boa monetária», uma serpente de ‘grande bojo’, - dobro da serpente - para o SME. As moedas poderiam em caso extremo, alterar as suas paridades, «realinhando-se». Era criado um «indicador de divergência» que ficava «vermelho» ou ‘apitava’ quando qualquer moeda atingia 75% da variação limite no ECU. Com a luz vermelha ou o apito, o país ficava obrigado a mexer na política económica de modo a trazer a moeda para maior proximidade da paridade central. Contudo este indicador praticamente nunca funcionou. O que na prática funcionou vai compreender-se a partir da Figura 1.


Na matriz, cada unidade monetária de um país (em linha) tem valor expresso em unidades monetárias de cada um dos outros países (em coluna) variando entre um limite “autorizado” máximo de + 2.25% e um limite “autorizado” mínimo, de - 2.25% da paridade central. Pode haver intervenções intra-marginais (dentro dos limites mas as intervenções importantes são as «marginais» que exigem, em princípio que cada Banco Central de um país membro disponha da moeda dos outros países membros. Para isso, se criariam ‘linhas de crédito’ em todos os bancos centrais do sistema. Na prática como bem se compreende, era coisa extremamente incómoda. O que funcionou foi pois que todos os países dispunham (ou poderiam dispor) de reservas em DM proporcionadas pela «facilidade de financiamento de muito curto prazo (FFMCP)», Assim, quando o Franco francês desce relativamente ao DM e atinge a margem inferior de 2.25%, o Banco de França tem de vender marcos (ou comprar francos, o que é o mesmo). A França obterá uma quantidade de marcos sem limite que venderá no mercado cambial até ao necessário. Terá que os pagar até 45 dias. Foi a «importação da credibilidade» (do DM) levou os países do SME após 1986, a reter DM em “reservas” com as quais intervinham ‘marginalmente’ para manter o câmbio enquanto o Bundesbank administrava a flutuação exterior DM/ Dólar.

Estamos agora em condições de compreender o «drama francês».



O DRAMA E A CURTA GLÓRIA FRANCESA
Em 1981 Mitterrand ganhou as eleições em França na base de um Programa Comum da Esquerda. Com Mittterrand Presidente, Pierre Mauroy foi o Primeiro Ministro e Jacques Delors o Ministro das Finanças. Imediatamente se iniciou o Programa Comum prevendo várias nacionalizações e um relançamento económico keyneseano canónico no estímulo orçamental e fiscal e na facilidade monetária. Quase de imediato, o deficit externo disparou e a fuga dos capitais acelerou. Entre 4 de Outubro de 1981 e 21 de Março de 1983, o FF desvalorizou três vezes. Três vezes Delors peregrinou a Bruxelas ao Ecofin e, de chapéu na mão, suplicou aos alemães que o ajudassem «depreciando» o DM, de modo a disfarçar a tragédia do franco. Após as duas desvalorizações de 1981 e de 1982, a ameaça da terceira desencadeou uma desconfiança generalizada e a fragilização permanente da posição da França nas relações intergovernamentais no seio da Europa. Após a terceira desvalorização que ocorreu a 21 de Março de 1983, seguiu-se a «semana decisiva» - como veio a ser conhecida - de mudança radical, com a adopção do modelo da «desinflação competitiva» e a criação do «Franco-forte»: mímica exacta do processo e da prática alemã, sem olhar aos custos imediatos e futuros dessa política. As taxas de juro foram aumentadas, o orçamento reapertado e os «custos» não se fizeram esperar: de 1983 a 1987, o desemprego aumentou entre 2% e 3% da população activa, um acréscimo de entre 500 mil e 800 mil pessoas. Mas a inflação desceu 6.5 pontos, de quase 10% para 3.5%. Novas dificuldades ainda atribuídas à pouca boa vontade alemã, levaram a uma última desvalorização do FF em 1986. Mas em 1987 é hora de glória para o «franco forte» que a si próprio se atribui o papel de timoneiro da «moeda única», vista como a âncora monetária franco-alemã. Primeiro, Chirac e Balladur obtêm do Chanceler Kohl o assentimento para a criação de um Conselho Franco-alemão Económico e Financeiro que reúne duas vezes por ano os Ministros das Finanças e os governadores dos Bancos Centrais: um putativo directório monetário europeu. Dois meses depois, ainda em 1987, Balladur propôs no Ecofin, a criação de um Banco Central europeu. Relembremos: se durante a primeira metade da década de 80 ocorreram ainda dez realinhamentos de paridades dentro do MTC do SME, entre 1987 e 1992 não se registou nenhum.


CRISE TERMINAL?
Com o derrube do Muro de Berlim, parece que o Chanceler Kohl e o Presidente Mitterrand teriam feito um «negócio». Em troca da consolidação da “âncora monetária”franco-marco”, (futura moeda única ?), o presidente francês concordava com a ideia de Kohl que, sabida a enorme influência alemã nos países ex-comunistas do leste europeu, a boa solução seria a de os atrair à união com a Europa.

De imediato Kohl decide também acelerar a reunificação monetária da Alemanha. Contra o parecer dos conselheiros económicos e financeiros e do próprio Bundesbank, resolve fazer equivaler 1 DM a 1 Ostmark, a moeda do leste, até ao limite de 4000 DM e 1DM = 2 Ostmark, acima de 4000 DM. Ora o Ostmark era na verdade uma moeda sem valor. Quando os turistas visitavam a Alemanha de leste, compravam ostmarks no mercado negro à razão de muitos por cada DM. Depois quando regressavam, se lhes tivessem sobrado Ostmarks, ninguém lhos compravam.

A consequência desta operação poderia ter sido prevista mas não foi. A gente do leste é agora favorecida com uma oportunidade única. De um dia para o outro, os seus rendimentos são multiplicados n vezes e, do outro lado do muro que já não era, há uma infinidade de coisas que não tinham nem que nunca na vida tinham podido ter. Precipitam-se pois numa verdadeira orgia de consumo. O exemplo que mais me impressiona foi o das bananas. Parece que em menos de uma semana teriam sido vendidas as bananas que no lado ocidental eram consumidas durante um ano! Os resultados podem ler-se e ver-se no Gráfico 1. A inflação alemã, num ineditismo absoluto, ultrapassa a inflação francesa entre 1992 e 1995. Claro que imediatamente o Bundesbank faz disparar as taxas de juro de curto prazo para o dobro do que eram antes do fenómeno inflacionário. Em 1992, a crise tornou-se aguda. Os governos inglês e italiano vêm-se a braços com furiosos ataques especulativos. A 11 de Setembro, com a lira no limiar inferior, o Bundesbank gasta 24 biliões de DM na compra de liras até que esta não tem mais remédio senão desvalorizar 7% que de nada vale porque a lira sai mesmo do mecanismo de taxas de câmbio do SME. Logo a seguir a libra inglesa também sairá. Esta saída proporcionou ao Hedge Fund do senhor Soros e a ele próprio, o melhor da sua fortuna com a sua aposta nessa saída. Paremos aqui, nesta curiosidade. Os hedge funds são empresas cujos accionistas, sempre poucos, são pessoas muito ricas. Por isso, com pouco capital realizado podem obter fundos em quantidade quase ilimitada, dada a sua credibilidade. E dessa maneira fazem os seus chorudos negócios. Uma das coisas a que se entregam é o chamado shorting. Obtêm emprestado em físico (um título de crédito, uma moeda, uma mercadoria), vendem-na imediatamente no mercado de valores e, se a sua aposta der certo, o preço do que venderam desce depois – por vezes muito -. Voltam a comprar o ´físico’ e depois entregam-no a quem lho emprestou e realizam o lucro que é a diferença entre o preço a que venderam e o preço a que compraram vezes o ‘volume’ do físico. Foi exactamente isto que fez o Hedge Fund do senhor George Soros com a queda da libra ao sair do SME.

O pior estava para vir em 1993. Para evitar à outrance nova e eminente desvalorização do FF, há cinco anos considerado como definitivamente ‘amarrado’ ao DM numa «âncora» que se imaginava poder vir a ser a «moeda» da União Monetária, o Bundesbank aceita defender o FF: gasta 50 biliões de DM na compra de FF.(é certo que recusou baixar as taxas de juro). Enquanto isso, o Banco de França gasta a totalidade das suas Reservas. Nada mais há a fazer senão fechar os câmbios, reunir a toda a velocidade o ECOFIN e encontrar uma solução para salvar o sistema. Porque não houvesse dúvida: se não se salvasse o FF e este tivesse que abandonar o sistema, seria o fim.

Após muitas horas de reuniões arriscou-se uma solução. Fazer de conta que o SME continuava a funcionar mas mudar o MTC autorizando uma flutuação em torno da paridade de 15% para cada lado. Na verdade quase uma flutuação livre. Mas calcularam bem. Quando reabriram os câmbios, o FF caiu 12% e ficou dentro do limite autorizado. Agora, já anteriormente consagrada em Maastricht a UEM, a moeda única tornou-se irreversível.


CIRCUNSPECÇÃO GERMANICA
A Alemanha desejava que a UEM fosse precedida de uma bem maior integração política. O Chanceler Kohl várias vezes o manifestou. Depois conformou-se talvez porque tenha pensado que o desenvolvimento da UEM (União Económica e Monetária) acabaria por ir nesse sentido. Mas de momento o Chanceler ter-se-ia deixado convencer pela «lógica» (perversa) de como se operaria o reequilíbrio das conjunturas económico-financeiras nos países membros na ausência de integração política prévia. Para compreendermos bem a questão vou comparar o caso americano designado de «federalismo fiscal» com a «lógica» atrás referida.

Federalismo fiscal – cada um dos estados calcula o ‘nivel normal’ do seu PIB para o ano da observação. A esse nível corresponde 100. Se no ano do exercício o nível cai abaixo de 100, revelando recessão, um mecanismo automático baixa os impostos federais e aumenta as subvenções federais, materializando uma «almofada» protectora do desempenho económico. Se o nível for superior a 100, o mecanismo produz os efeitos contrários aos anteriores. Existe assim uma «perequação» cujo saldo central pode ser – em conjunturas nacionais piores – muito elevado. O sistema só funciona porque o orçamento federal é da ordem de mais de 35% do PIB. A lógica do reequilíbrio na União Europeia é diferente. O Orçamento da EU é pouco mais elevado do que 1% da soma dos PIB dos membros. Quando um país membro da moeda única entra em recessão, o desemprego aumenta. Como se resolve?.com os trabalhadores a emigrarem para outro pais membro. Por outro lado, a baixa do custo do factor ‘trabalho’ promete ganhos de capital e lucros e o investimento acorre ao país membro em dificuldade. É o cruzamento dos fluxos dos factores de produção «in-out, out-in» que realiza o reequilíbrio (??). É bem evidente a sua insuficiência.

A maioria dos membros da União Europeia, desejavam a UEM e a moeda única. Viam nelas a possibilidade de importar a credibilidade da economia e da moeda alemã. Mas os alemães temiam os riscos e oporiam tenaz resistência à substituição por desconhecidos ou incertos, dos símbolos da sua estupenda recuperação e desempenho económicos. Daí uma indeclinável exigência dos decisores alemães, colocada ao projecto monetário. A fasquia da inflação teria de ser zero e, em caso limite, não exceder os 2%. Para isso haveria um Banco Central (cujas ‘sucursais’, digamos, seriam os bancos centrais dos países membros) – uma réplica perfeita do Bundesbank. Sem isso nem pensar em ‘moeda única’.


AS CONDIÇÕES DE MAASTRICHT E SEUS FUNDAMENTOS
Os Critérios de Convergência, propostos pela Alemanha para a criação do EURO foram transpostos para as Condições de Maastricht a que as economias envolvidas no processo deveriam garantir no início da terceira fase. Esta, adiada uma vez ficou marcada para 1 de Janeiro de 1999. Os critérios/condições que os países candidatos deviam satisfazer eram cinco mas aqui só me referirei aos dois mais em causa actualmente

4- que o deficit orçamental do governo não excedesse os 3% PIB (embora o Artº 104 do Tratado preveja excepções em circunstâncias ali definidas);
5- que a Divída do governo não excedesse os 60% PIB (o mesmo Artº 104 prevê as excepções).

Primeira pergunta: aquando da entrada dos membros e da adopção do Euro, cumpriam aqueles as exigências de Maastricht? Resposta, não e não! Casos limite eram, por exemplo, o da Itália e o da Bélgica, ambos países com Dívida Pública acima dos 100%!

Ao propor – e impor (PEC) – estas condições como teriam os alemães raciocinado? É quase certo que o exercício feito por eles para chegar àqueles condicionalismos quantitativos teve, na sua base a escolha dentre membros de um «país alvo» e a resposta dificilmente seria outra que não a da Itália. Este país era, dentre todos aquele que apresentava níveis de inflação históricos maiores.

A questão não é difícil de entender e vou procurar explicá-la (3), limitando ao mínimo possível a sua expressão em «economês». Infelizmente há um mínimo incompressível.